É fácil hoje elogiar Mandela e assumirmo-lo como referência incontornável do melhor que a humanidade soube e sabe produzir. E, manobrando-nos por entre adjectivos superlativos, reservados a poetas de todas as línguas, vê-lo como símbolo vivo das nossas melhores qualidades e valores, como garante da nossa solvência moral enquanto espécie, ou mesmo como pastor semi-divinizado, empurrado para assumir as culpas cristianizadas das sociedades contemporâneas - nomeadamente as ocidentalizadas -, resguardando e protegendo-nos do nosso estado natural de mesquinhez visceral, avidez monetarista e amoralidade individual.
Não estranha por isto a romaria colorida e organizada que se prepara para congregar na África do Sul artistas e políticos, amigos e palhaços, cínicos detractores e recém-convertidos, reunidos para prestar homenagem ao vulto em que Mandela se tornou, mas que nunca procurou ser. A todos Mandela certamente receberia com agrado, com um sorriso rasgado, irónico. Afinal, fora nesse tipo de ser humano que se tornara. Que soube se tornar. Tolerante. E avesso às avarezas das politiquices, mais preocupado com os erros da vida, que com a benevolência da história, ou o seu legado. Poderia ter-se tornado numa vaca sagrada, como tantos almejam. Nunca quis. Nem alguma vez procurou intervir em fixar os seus contributos de forma a marcar a memória que outros dele possam ter, como tantos procuram (muitos com menos anos de política - e por vezes de vida - que Mandela de cárcere). Ou em apadrinhar afilhados a granel e permitir que ávidos séquitos de seguidores mantenham privilégios e existam como necrofágos agarrados à figura de um líder que sabem que jamais lhes reconheceria competência humana ou excelência comportamental. Gente medíocre, muita, de quem Mandela, estou certo, sorriria. Rasgadamente; porque soube cedo entender que a espécie humana é, como ele foi, imperfeita, vaidosa (invejosa) e temente. E porque acreditaria que, como ele, também outros poderiam reconhecer os seus defeitos e erros – os intrínsecos e os societais – e de neles intervir progressivamente, absorvendo os valores universais com que hoje, isoladamente, iconizamos Madiba.
Esquecem alguns que Mandela proviera de um mundo avesso a conceitos como a não-discriminação, a tolerância, a igualdade ou o feminismo; modernidades hoje ainda pouco interiorizadas, infelizmente. Nascera para ser preto, racista, xenófobo. Para ser alfa-macho, marido infiel, bandido e revolucionário (ou terrorista segundo alguns). Nascera para ser ‘Nelson’, esse seu nome branco, e odiar, combater e revoltar-se contra quem diariamente o oprimia. Massivamente. Nascera para não ser tudo aquilo em que soube se tornar.
Partindo agora Mandiba, escolho recordar o caminho que soube traçar para se emancipar de pretéritos preconceitos e de férreas amarras sociais, que o poderiam ter tornado num político banal, ou mesmo nessa tão desejada e imaculada vaca sagrada. Até porque sei que esse caminho, rumo à libertação das nossas amarras, posso – e podemos todos - trilhar.
(publicado a 11 Dezembro 2013)
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