O Governo português anunciou mais um pacote de medidas para combater a crise económica e financeira.
A justificação para a implementação destas medidas, e a principal base da sua legitimação, tem passado frequentemente pela utilização de um discurso supra-nacional: a conjuntura financeira mundial justifica a crise, e as "ordens" de Bruxelas legitimam as soluções. Neste discurso, que indirectamente assume a existência de um Estado Europeu quasi-Federal, a "Europa" é-nos apresentada como neutra, apolítica e sem características ideológicas.
Se assim for, se este centro de decisão político for inócuo ideologicamente, significa que o patamar superior do nosso quadro de referência institucional dispensa interpretações de índole partidária. Nestas condições a tradicional divisão esquerda-direita deixaria de fazer sentido, bem como a existência de partidos políticos. Afinal, se toda a política é imparcial, assexuada, não há conflito nem divergência, somente a aceitação da clarividência da neutralidade.
Claro que na realidade a Europa não é nenhuma entidade sem cor nem cheiro; nem - muito menos - uma instituição sem política ou definição programática. Hoje os destinos da União são comandados de Bruxelas por um governo de direita. Reconhecê-lo significa identificar - claramente - que este pacote de soluções para a crise financeira tem uma marca ideológica assente numa agenda liberal.
Infelizmente, ainda não se interiorizou que não pudemos defender a existência de política partidária, e ideológica, somente ao nível infra-europeu. É imperativo promover um salto cultural que transporte as regras da vida política nacional - assentes no conflito democrático entre partidos políticos - para o patamar da União. Nestas condições, Durão Barroso teria total legitimidade de formar governo; cabendo aos socialistas a decisão de aceitar um bloco central ou remeter-se à oposição, assumindo em ambos os casos a sua posição política. Um Bloco Central vincularia os socialistas às medidas da Comissão; estar na oposição obrigaria combater politicamente o modelo liberal reinante na Europa e a retirar os comissários das cadeiras do poder; ou seja, a se actuar no ‘plateau' europeu como nos palcos nacionais, de forma directa, transparente e democrática.
Infelizmente para a qualidade da nossa democracia ainda se procura manter a ficção de que a construção Europeia deve assentar num permanente e obscuro Bloco Central, edificado numa dinâmica de consenso e não de conflito democrático. Enquanto este paradigma não for alterado, temo que se manterá o embuste dos discursos fáceis que remetem a legitimidade da necessidade da aplicação das medidas liberais consagradas no PEC para a clarividência neutral das instituições europeias.
josereissantos@gmail.com
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José Reis Santos, Historiador
[artigo publicado no dia 25 de Maio 2010]
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